As feridas abertas da saúde suplementar

Ricardo Ayache, médico cardiologista e presidente da Cassems

A pandemia de Covid-19 abriu inúmeras feridas nos sistemas de saúde de todo o Mundo e agravou as falhas existentes no modelo brasileiro da saúde suplementar. Em 2022 as operadoras registraram um prejuízo operacional de R$ 11,5 bilhões no acumulado de 12 meses. Este foi o pior resultado em 20 anos, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Os sintomas que levaram ao diagnóstico de insustentabilidade econômico-financeira do setor abrangem o aumento das despesas assistenciais, a alta sinistralidade, o aumento da judicialização, a alta inflação no setor da saúde e o fim do rol taxativo.

Três anos depois do primeiro caso de Covid-19 registrado no Brasil, todas essas feridas não só seguem abertas, como estão mais expostas, profundas e colocam em risco a sobrevivência dos planos de saúde.

O cenário brasileiro já está estampado intensamente nas páginas de noticiário nacional, mas como gestor da Caixa de Assistência dos Servidores do Estado de Mato Grosso do Sul (Cassems), maior plano de saúde do Estado, entendo ser necessária a discussão dos impactos do colapso da saúde na nossa realidade local.

Durante a crise sanitária, a Cassems adotou ações emergenciais para adequar as necessidades de atendimento que o momento exigiu, como a criação dos hospitais de campanha, a contratação de mais de 300 profissionais, a disponibilização de mais 600 leitos hospitalares, além da colaboração com a testagem e participação da força-tarefa de vacinação com a Prefeitura de Campo Grande, que aplicou 60 mil doses de imunizantes.

Destinamos R$ 290 milhões para o combate à pandemia e tratamento dos pacientes. Cada centavo investido valeu à pena, pois conseguimos, na rede de hospitais da Cassems, ter desempenho muito acima da média nacional. Nosso índice de sucesso de recuperação de pacientes internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) foi de 89%, enquanto a média brasileira foi de 62%.

Isso tudo com um valor justo para os beneficiários. Nosso plano de saúde tem uma média de contribuição de pessoas por mês de R$ 362,00, valor muito abaixo do que o praticado no mercado. Para se ter uma ideia, outras operadoras de autogestão que sejam semelhantes na qualidade praticam valores acima de R$ 550 reais e que podem chegar até R$1.000,00 por pessoa ao mês.

Ao longo da nossa trajetória investimos na profissionalização da gestão e em mecanismos importantes como os programas de governança corporativa e compliance. Assim garantimos o controle rigoroso dos custos e o emprego eficiente de recursos.

Quando achamos que o pior havia passado, com a queda nas taxas de internação hospitalar, a vacinação massiva e o controle da disseminação da Covid-19, ficamos com as sequelas da pandemia.

Acompanhamos o crescimento de consultas, exames e procedimentos, que não foram realizados neste período. A demanda represada de três anos, somadas aos atendimentos de rotinas e às epidemias sazonais, como crises de viroses e dengue, provocaram a sobrecarga em atendimentos da nossa rede.

A consequência é sentida no aumento da sinistralidade, a relação entre os valores gastos com serviços médicos e hospitalares de uma operadora de saúde e as receitas geradas por meio das mensalidades pagas pelos beneficiários.

Somente no primeiro trimestre de 2023, a sinistralidade do setor de saúde suplementar fechou em 87,2% – cerca de 1,2% acima da apurada no mesmo período do ano passado. Quando este indicador está alto, significa que os gastos com os serviços de saúde superam as receitas e podem levar a prejuízos financeiros para a operadora.

Na Cassems o cenário não é diferente. A sinistralidade do nosso plano em 2022 chegou a 82,18%, e já no primeiro trimestre deste ano registramos 88,16%, um aumento de 5,98 pontos percentuais (p.p).

O fim do rol taxativo, lista de procedimentos obrigatórios prevista pela ANS, e a exigência dos fundos garantidores são fatores importantes que geram a desestabilização das contas do plano de saúde. As operadoras têm a obrigatoriedade de oferecer cobertura de exames ou tratamentos que não estão inclusos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar.

A conjuntura econômica se agrava, pois continuamos enfrentando problemas antigos, como o aumento da judicialização da saúde. Cada vez mais usuários da saúde suplementar submetem ao Poder Judiciário a decisão sobre a obrigatoriedade ou não do fornecimento de determinado tratamento ou medicamento. Somente em 2022 foram identificados cerca de 164 mil novos processos judiciais sobre saúde suplementar no Brasil, segundo o Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Em Mato Grosso do Sul existem cerca de 15.400 processos em andamento sobre saúde.

O resultado dessa equação está no balanço financeiro do nosso plano. Em 2021, pela primeira vez em seus 22 anos de história, a Cassems apresentou balanço negativo. A saída para encontrar o equilíbrio está em revisar todas as peças dessa engrenagem.

A atuação da Agência Nacional de Saúde deve voltar seu olhar para as operadoras e contribuir na busca pelo equilíbrio do sistema de saúde suplementar, haja visto que hoje temos 50,6 milhões de brasileiros inseridos nesse contexto. Um número que cresce cada vez mais, impulsionado pelo medo causado pela pandemia.

É necessário entender que a crise que enfrentamos ameaça não apenas o setor privado de saúde, mas pode ocasionar uma sobrecarga insuportável ao Sistema Único de Saúde.

Precisamos discutir o modelo de remuneração padrão da saúde suplementar, que segue a lógica de reembolso conforme a realização de procedimento, investir cada vez mais em um modelo de saúde preventiva e incentivar o uso consciente da assistência à saúde.

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